sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Contrariar as estatísticas. ... é a meta!

VERSOS | PROSAS – Por: José Antonio Campos Jardim
Alguns episódios ou pensamentos em nossas vidas são mágicos e únicos. E, até certo ponto são conscientes, não dá para entendê-los no plano real. Todavia, é que eles surgem como um passe de mágica e relaciona-se diretamente com o pensamento presente, nutrindo-se de fragmentos do passado e atualizando-se de elementos do imaginário, ou seja, futuro. Dias atrás fui agraciado com um episódio desses e neste em especial fui conduzido à minha adolescência, passado e para ser mais exato, eu, voltei vinte e cinco anos atrás da minha vida. Pela primeira vez ... na oportunidade pude acessar meu imaginário (inconsciente/reprimido) foram alguns segundos de retrospectiva de vida - doces lembranças. Na ocasião, deparei-me com um adolescente sem perspectiva de vida, confuso, angustiado e inconformado com sua realidade e a dos seus amigos adotados pela criminalidade. Tal devaneio veio à tona quando estava preste a assumir minha fala na Escola Superior da Polícia Civil para falar sobre "Racismo Institucional: E as Consequências Psicológicas para o indivíduo". Em meu delirium vi-me na figura de um adolescente, magrelo, franzino e assustado - nada diferente do cotidiano de milhares de adolescentes nos dias atuais. Reafirmo, vivenciei pela primeira vez o tal do déjà-vu, eu, achava que este lance de viajar acordado de olhos abertos era coisa de usuários de drogas ou de ricos. É, foi uma alucinação muito louca como dizem, os pias nas ruas.


Porém, ao votar a realidade (presente) a minha mente me traiu e despojou-me de fatos vivenciados na adolescência. Repreendeu-me do porquê da viajem e automaticamente, relacionou o momento a minha vida passada. Nesta viajem tive o desprazer de acessar os episódios de quando eu e meus amigos éramos perseguidos pelos policias. Não teve um dia sequer em nossa história que um de nós não levou uma geral da polícia. Éramos constantemente caçados, a todo momento, não entendíamos - o por quê? No entanto, os episódios passaram a ser considerados por nós "negativos", pois, todo vexame gerava ódio e para com todos os policiais. Passamos a generalizar e tê-los como os homens maus. Nesta época, por volata de 1980, também nutríamos nossas rivalidades entre as Gangues, ou seja, entre as favelas vizinhas. Não dava para vacilar ao adentrar em território inimigo e de igual forma com o efetivo que nos perseguia diariamente. Gerenciávamos toda indignação de igual forma para com todos os adversários. Éramos movidos pelo sentimento da raiva para com os adolescentes das Gangues rivais por questões de território, liderança e das meninas. Já para com os policiais por nos oprimir em público diariamente, lembro-me claramente dos altos cola brincos (tampas na cabeça), socos no estomago e tapas na cara durante os enquadro. Inúmeras vezes fomos envergonhadas em praça pública, nas ruas e enfrente a "nossa escola" - matérias jogados ao chão.
Ao relacionarmos toda humilhação vivenciada as leis das ruas e é claro, o sangue fervia, pois, era do conhecimento de todos os pivetes que na cara de um ser humano não se bate. Mas, os caras (policias) sabiam disso e utilizam dessa violência para nós humilhava duas vezes - uma ao nos bater na cara e outra ao nos humilhar em público. Para nós eles eram a personificação do sistema opressor, nas favelas. E, mesmo não entendendo muito bem tal analise, pois, ora eram a lei e ordem, porém, na surdina eram também os bandidos que passavam para arrecadar dinheiro nas bocas de fumo. E como entender ou respeitar? Pois, os mesmos policiais que nos abordavam com fins de manter a "ordem" eram o que promoviam a desordem -, já anestesiados pelo descaso e cansados, constantemente respondíamos as repetidas perguntas:
A) O que fazem aqui?
B) Usam drogas?
C) Onde mora?

Tínhamos as respostas na ponta da língua, mas, não entendíamos o porquê agirem com crueldade conosco ou melhor, hoje, entendo! Éramos nós proibidos de acessar nossos direitos a cidade. E, nas abordagens os caras faziam questão de bagunçar as nossas bolsas de escola em busca de nada -, era tanto terror para quê? Parece-me que tinham prazer em jogar os nossos materiais escolares no chão - sorriam ao fazer isto. ... e por alguns minutos nos esculachavam. Várias e várias vezes jogaram nossos cadernos no barro e pisotearam. ... e, ao final, tínhamos que juntar rapidamente aos ponta pés, e mesmo, sabendo eles que estávamos voltando da escola para casa. Entre todos adolescentes o João era o mais preto entre nós. Um cara do bem, amigo de todos e para todos os momentos. O grupo apelidou pelo vulgo de Tijolo. O negão era forte e bom de bola que só, chegou a jogar em algumas escolinhas de futebol, mas, sem apoio familiar abandonou e foi ficar conosco nas ruas. Ele era quem mais sofria com os enquadros.
Tijolo tinha um chute de direita que mais parecia um tiro de canhão, assim dizia os goleiros e dava até dó deles ou de quem se atrevia entra na frente dos chutes. Por várias vezes no campinho de terra vermelha batida, presenciamos goleiros abandonar o gol na carreira enquanto ele se preparava para chutar, outro que se ariscavam a pegar seu chute quebraram o dedo ou dedos.  Nunca “entendemos” muito bem os motivos da revolta dele, pois, parte de nós tínhamos os pais separados e “justificávamos ser revoltados” mediante às separações. Já o Tijolo, convivia com os pais, tínhamos invejamos dele e sempre nos questionamos o porquê usar drogas. ... ah, ele também era mostro na dança. Em sua casa tinha tubaína e frango assado aos fins de semana. Na época em que dançava ganhou vários títulos com o grupe de dança, Black Line. Não dava muito para entender qual era a dele. ... o cara era bom de bola e dançava horrores e tinha carne assado e tubaína em sua casa, as meninas piravam com ele. E era um cara revoltado, ele convivia com mais três irmãos, os pais e o agregado, o Palito. Tijolo sempre se referia ao Palito como cunhado. Palito não curtia a galera, vivia pelos cantos e pouca conversa, o apelido fomo-nos que colocamos. O cara era idêntico a um Palito de fósforos - cabelo avermelhado e magrelo. Ele não convivia com a família do Tijolo, vinha uma vez ou outra nas quartas e na sexta partia. Nos bastidores sempre rolava algumas piadas entre nós que o maluco era casado e só passava na casa do Tijolo para dar uns pegas na irmã dele. Rolou altas tretas por estas conversas fiadas, mas estava na cara que havia alguma treta.
Quanto ao Tijolo não sabíamos ao certo se os seus pais não ligavam para eles - ou seja, a mesma situação que os nossos irmãos mais velhos, responsáveis pela casa e pelos irmãos mais novos. Seus pais todos saiam de madrugada para trabalhar, ele ficava na responsabilidade de arrumar os irmãos e levá-los para creche. Por vezes chegava à escola atrasado com mil e uma desculpa, mas, dava pra perceber pelo cabelo cheio de lá de coberta e sem o uniforme, quando uniformizado sujo e amassada, rosto surjo de remela, os sinais indicava que ele dedicou todo o tempo aos irmãos e se esqueceu dele, mas, não tinha desculpa era motivo das piadas e várias brigas entre nos. Ele, malandro não deixava baixo e encarnava em nossas almas relembrando nossas pisadas na bola nas ruas. Roberto, seu pai era metido a malandrão, cheio de ginga no andar, falava na gíria, vivia de banca em banca jogando no bicho com a velha ilusão que ganharia e ficaria rico. Sua mãe, Maria uma negra peso pesado, saia muito cedo todos os dias para trabalhar de diarista - partia no primeiro busão, ás 5h30 da madrugada. Poucas vezes há víamos a não ser aos finais de semana, no domingo quando preparava o delicioso frango. E, nos tempinhos que tinha entre o jogão e limpeza da casa aplicava aquele sermão... “olha o que vocês estão aprontando durante a semana". ... "já avisei vocês! ... Se souber de algo vou pegar todos pela orelha e levar até os pais de vocês - só a voz de trovão dá mulher já metia maior medo”. Sim tia. ... estamos de boa, não estamos fazendo nada - era nossa resposta. Na frente dá casa do Tijolo, havia uma grande árvore de Santa Barbara, embaixo daquela abençoada sombra, fizemos alguns bancos, transformamos a casa do maluco, em nosso QG. Toda Gangue se reunia ali durante a semana, orquestrávamos as bagunças nas ruas, jogos de futebol, os passes de dança e os passeios. Enfim, tudo era maravilhoso, mas sempre nos incomodava e nos angustiava em ouvir o Tijolo falando das gerais na rua, indagávamos o porquê das perseguições, ele alvo constante da polícia e não entendíamos. Anos depois um senhor capoeirista nos explicou, passamos a entendemos que os negros, ou seja, tudo que está ligado à cultura afro-brasileira era alvo de injurias e por ser ele negro -, suspeitos pelos policiais e pela cor eram subjugados constantemente. Tijolo parecia o homem arranha, vivia com as mãos nas paredes. Foi nesta época que observamos como éramos vistos pelos brancos asfatistas. E, ser negro para os policias e para uma grande parcela da sociedade é ser sempre o suspeito. Desta forma, fez para nós total sentido a letra Negro Drama - Racionais Mc´s para nós.


Todavia, toda perseguição alimentava o nosso ódio. ...  nossa vontade era parti pra cima, mas, sabíamos que levaríamos desacerto grande. ... o jeito era ficar calado, pois, só de responder “não” em vez de “não senhor” apanhávamos na cara com direito a plateia nos assistindo.  No entanto, toda repressão alimentava minha indignação, mas, de forma contrária e tinha comigo que sobressairia ao sistema opressor, não ficaria na inércia que o sistema me colocava, não seria tragado pelo crime e ser mais um preto fudido a alimentar o sistema carcerário. Em meio a toda desgraça que a nós é atribuído, aprendi que nada vem fácil da ponte pra cá. ... (Racionais) e superar, ocupar espaços é a meta, pois só assim contrariamos as estatísticas. ... anos se passaram e nada mudou para adolescentes negros no Brasil. As oportunidades continuam escassas, jovens sendo assassinado diariamente e os espaço de poder continua predominado pela elite patriarcal caucasiana. Lembro-me que parte de nós tive que “abandonamos” os estudos para poder trabalhar nas lavouras de café, algodão, soja e outras entre safras. A renda servia para nos manter e auxiliar nos gastos de nossas casas. O pior de ser boia-fria era ter que aguentar os outros adolescentes brancos nos zoando. Éramos motivos de sátiras e piadas constante pela cor de pele, perseguido por trabalhar na roça e ter a cor da pele preta. Mas, pia de rua é terrível, logo desenvolvemos nossas táticas para ludibriar a geral sobre nosso trampo. E, passamos a deixar as roupas surjas na roça dentro de sacola plástica, caso chovesse durante a noite e íamos com as roupas de ir à igreja nos domingos. E, quando os outros perguntavam em que é onde trabalhávamos sem titubear dávamos o papo reto na geral, inventando as mais loucas empresas e serviços. Por algum tempo os vacilões curiosos caíram em nosso papo furado.
Mas, alguns adolescente não estavam nem aí com nossos trabalhos, ficavam de zoião em nossas roupas, maravilhados em nos ver ostentando tênis de marca e em nosso dinheiro, era só alegria, geral e a tia da barraca de pastel ficava de cara, pois, tínhamos grana todos os dias pra compra tubaína, pão francês e paçoquinha de amendoim todos os dias. Algumas pessoas indagavam como podia termos “ótimos serviços” e não estudar, aliás estudávamos, mas já ouviu falar no estudante turista? Aparece no início do ano e no fim pra reclamar das faltas e das notas. Um dia a casa caiu, um ou alguns pilantras nos fizeram o favor de roubarem as nossas roupas na roça. Naquele dia tivemos que capinar soja com as roupas de passeio. E, capinar soja têm dois problemas, o primeiro: O orvalho da noite que molha as folhas do pé de soja que molha toda a roupa durante a manhã; segundo. ... á terra vermelha seca sobe com as enxadadas. Juntando estas misturas (água e terra) temos a química perfeita para formação do barro. Em resumo as nossas roupas ficaram imundas/avermelhadas. Ao desembarcarmos do pau-de-arara (caminhão que transportava as pessoas - hoje proibido), para nossa infelicidade demos de cara com o Barata. Um cara que classificamos no mínimo estranho, branco igual uma folha de papel, seus olhos eram tão azuis que parecia com o fundo da piscina da casa onde minha mãe trabalhava, cortava o cabelo modelo tigelinha, vivia isolados na escola, não era amigo de ninguém e também não era nosso inimigo. Nossa missão era tentar calar o Barata, pois ele nos viu descendo do pau-de-arara, sujos.
Barata, era uma espécie de lobo solitário, sem matilha. Não tinha amigos e vivia isolado. Por algumas vezes nos ajudou com algumas brigas na escola, sem parceria afetiva, até o dia que solicitamos sua ajuda contra a Gangue Sete Copas. Está Gangue era temida na escola pelo grande número de membros, pela crueldade e por nunca apanharem das outras Gangues. Os caras empatavam com a gente, pois também até aquele dia éramos invictos. Sempre ficou no ar se um dia nos encontrasse que levaria a pior. Por fim este triste dia chegou, o medo falou mais alto entre nós, pois, algumas histórias circulavam nos corredores da escola que os Sete Copas tinham furado de faca um pai de um aluno. Éramos terríveis, mas nada de machucar as pessoas. Naquele momento toda ajuda era bem-vinda e nada melhor do que o Barata, cara estranho com hábitos sinistro para somar-se a nós. Nosso calculo era ter reforço para chegar de igual na guerra que estava por vir. Barata ao ser convocado de imediato aceito e nos convocou para de estratégia de guerra. Marcou a reunião no banheiro da escola no intervalo. Ao adentramos, ele todo valentão colocou geral pra fora e de imediato ordenou o Tijolo que guardasse á porta - "não deixe ninguém entrar. ... se não pego você de soco negão". Naquele dia para nossa tristeza descobrimos que o Barata andava armado com um punhal, corrente e um soco inglês, tudo dentro da velha bolsa jeans. E, material escolar nada, o cara se achava o Rambo. Tudo que não precisávamos para nossa treta. Descobrimos que todo aquele armamento era o motivo dos outros alunos o temer. De imediato, o Barata topou fazer parte da confusão, mas, deixo bem claro que usaria seu punhal e nós a corrente e o soco inglês e que queria furar alguém. Quero ver sangue! Suas palavras aterrorizaram a todos naquela manhã. Saímos da reunião com dúvidas sobre nossa escolha de parceiro, pois, o maluco era um "psicopata". E, ao sacar o punhal de dentro da calça no banheiro entrou em êxtase. Lembrou-me do cabo branco e preto, o bagulho parecia não ter mais fim ao ser empunhado de dentro da sua calça. Entramos em choque, pois, o "psicopata" do Barata queria é matar.
E, com medo de irmos todos presos o jeito era abortar a missão. Convocamos outra reunião. Mas, como falaria para o louco que não rolava sua ajuda, tentamos convencê-lo em não nos ajudar. Não sabemos se ele entendeu ou não, mas, na hora da treta ele compareceu e saiu foi no soco contra os nossos “adversários”. Ufa mais uma vitória e sem morte, alegria, mas, por alguns anos tivemos que andar em duplas, pois, passamos a ser perseguidos pelos Sete Copas. O Barata só teve que amargar um olho roxo que para ele tinha como troféu. E, entre nós ficou a dúvida se o Barata era mesmo Rambo que ele falava ou Branca de Neve - pois, nada do que falou fez. À resposta não saberemos, ele morreu. Mas, na tarde em que nos viu descendo do caminhão de boia fria, fomos até sua casa para convencê-lo a ficar de boca fechada, sabíamos que era missão impossível, tentamos. Ele nos pediu grana semanalmente, recusamos e tentamos entrar em um acordo e não rolou. Cogitamos de dar uma surra nele, porém, o medo do armamento nos impediu. Voltamos para o QG e nos veio à ideia de ameaçar, enfim, como ameaçar um doido. Não tinha medo de nada. ... assim demonstrava. Nada das negociações avançou e por fim o excomungado do Barata só faltou pôr as nossas fotos nos jornais. Por meses fomos motivo de piadas novamente. Mal sabia o Barata que tinha me feito um favor, pois, mediante este episódio resolvi volta de vez para escola e deixar de ser turista. Decidi que terai um emprego que não me rendesse piadas.

E, com todas as dificuldades de um analfabeto funcional conclui mesmo estudo e fui para faculdade e me formei em teologia e psicologia. Ao olha para nosso grupo do passado e para os adolescentes de hoje e, me pergunto: quais são as perspectivas de vida? O Barata nunca machucou ninguém a não ser ele mesmo, pois, um dia em alta velocidade bateu com seu carro contra uma arvore. Toda dor de existir e não ter a cor estabelecida como padrão é que levou o Tijolo ao consumo de drogas e abandonar sua carreira no futebol, pois, era motivo de piadas na escolinha de futebol e constantemente perseguido pelos policias. Isto, viemos saber anos depois no velório do seu irmão mais novo que foi assassinado em uma briga de Gangue. No dia 5 de dezembro, pude voltar ao tempo e vivenciar nossa realidade. ... hoje, entender um pouco sobre a dor da alma, ou melhor, das dores que acumulamos por anos mediante a segregação e marginalização da nossa cor, credo religioso, condição social, cultural, financeira e outros. É fato que milhares de adolescentes não sabem lidar com suas dores, mediante a segregação, são consumidos dia-a-dia em suas angústias e opta pelo anestésico da favela, o crack. Que fique escurecido a todos que nem todo adolescente negro é ladrão por morar em uma favela ou por ser boia fria. ... e, sim, todo adolescente é cidadão.

E, mesmo os nossos pais não ocupando os espaços de poder e não liderando as grandes empresas no Brasil. Nós negros somamos 54% da população, movimentando 68,6 bilhões de reais por ano, segundo o Instituto Data Favela. E, mesmo sendo parte essencial nesta sociedade hipócrita, mal temos acesso a serviços básicos e muitos governantes insistem em fala de meritocracia e que eles saibam que não tem como falar de méritos em um país que não distribui de igual forma suas oportunidades para com todos.
José Antonio é Presidente Estadual da Central Única das Favelas do Paraná, ativista social, empreendedor social, pastor IPB, formado em Teologia (FTSA) e Psicologia. Contato: jose.cufaparana@gmail.com

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