VERSOS & PROSAS – FAVELA | Por Celso
Athayde, 24 out 2019
Nos últimos anos, o Brasil passou por
transformações que impactaram a favela de vários jeitos. A economia na base da
pirâmide melhorou e uma nova realidade impõe novas formas de organização e
reivindicação das bandeiras do movimento social.
O fato é que nos anos 90 meus amigos e
amigas dos movimentos sustentavam com um orgulho quase santo que desprezavam o
dinheiro. Nenhum argumento os convencia do contrário. Pior, até acirrava os
ânimos. Talvez por isso muitos deles continuam passando necessidade em casa, com
projetos lindos para educar os filhos dos outros sem conseguir educar os
próprios filhos. Isso não é movimento social, é auto-destruição. Minha
alternativa, a criação da Favela Holding, me trouxe muitos seguidores no
Brasil, enquanto também fez aumentar em paralelo a quantidade de críticos. E
eles muitas vezes menosprezam ou vulgarizam o debate econômico.
Todos os dias, somos obrigados a nos
reinventar, em função do preconceito ou da alienação que domina muitos
movimentos sociais sobre as mudanças nas favelas nos últimos anos. Todos os
dias, somos obrigados a nos reinventar em função dos aparelhamentos políticos
que impactam a entrega de grande parte das organizações. Somos também obrigados
a nos reinventar em função da total falta de diálogo e da agenda política que
tenha ligação direta com os anseios desses territórios.
Muito tempo já passou. A CUFA,
organização que ajudei a fundar vai fazer 20 anos em 2020, e eu já não faço
mais parte dela formalmente. Aliás, eu faço, mas agora é só como voluntário. Minha
vida hoje é administrar negócios em favelas através da Favela Holding, um grupo
com mais de 20 negócios. Com ela vou mantendo-os de pé e driblando o apetite do
tráfico e da milícia Brasil a fora. É que as ações na favela só serão
sustentáveis, se nos equilibrarmos entre a proximidade e a distância desses
atores que controlam os comportamentos do lugar.
Eu tô com 56 anos, já. Olho para trás e
me impressiono com o que já construímos. Os exemplos que demos e o legado que
vamos deixar. Só nós sabemos os desafios que encaramos. Ser vanguarda não é
fácil.
Não foi fácil. Mas daí olho para o
presente e vejo 22 empresas sendo administradas a todo vapor, vejo uma Taça das
Favelas mobilizando milhares de jovens nas favelas e vejo, finalmente, uma
pauta positiva sendo imposta goela abaixo de quem torce contra o
desenvolvimento da favela.
Se olho para o futuro, então, as
oportunidades na favela, da favela e para a favela vão para os milhões. Pois a
favela não tem somente carência, tem muita potência.
Tenho me perguntando nesses últimos
meses sobre os riscos do momento atual, sobre os problemas que vem por aí agora
que desbravadores de mares descobriram os 85 bilhões de reais que a favela
movimenta todo ano.
Hoje temos muito bons exemplos, apesar
dos riscos. Não por acaso, a Favela Holding provou que podemos receber
investimento econômico externos em parceria com os moradores e apontar novos
caminhos. É possível colocar a favela, mais do que como público-alvo ou
coadjuvante da sua história, mas como protagonista da mudança.
Talvez por isso seja a hora de cobrar as
repostas para as perguntas que fiz 19 anos atrás para alguns movimentos dos
quais fiz parte e se orgulhavam em gritar que estavam ali só por amor, jamais
por dinheiro.
Será que já não passou da hora de o Hip Hop
se repensar? O Hip Hop deve mesmo se limitar a um movimento de denúncia, mas
não de produção de mudanças reais nas vidas de milhares de jovens? Jovens que
precisam de liberdade para serem felizes, e de educação para terem liberdade?
Pois bem.
Sem o capital disponível, vamos ficar
apenas no campo do discurso e, com a atual revolução tecnológica, anda muito
difícil pautar um discurso de unidade; ao mesmo tempo em que as pessoas estão
cada dia mais preocupadas só com a própria sobrevivência.
O movimento negro precisa definir sua
nova tática: a bandeira da reparação, ainda que fundamental, é suficiente? Ou
vamos concordar que os pretos têm força pra pautar uma agenda econômica, já que
representamos 40% da produção da riqueza desse país segundo os institutos data
favela e locomotiva? É coisa de 1,7 trilhão por ano. E aí?
E a favela… É. A favela tem que tomar
uma decisão agora, já, pra ontem, sobre si mesma: se vai se organizar para esse
novo tempo ou não. Tempo em que as favelas são uma mata virgem observada por
navios piratas ancorados nos asfalto, curiosos sobre o que comemos, como
vivemos, o que pensamos. À espera de um momento certo de desembarque para dar o
bote triunfal e levar o tesouro. Ou você vai me dizer que 85 bilhões não é um
grande tesouro?
O Brasil mudou e não podemos mais
aceitar predadores, não podemos assumir o comportamento de camundongos de
laboratório apaixonados por nossos eternos cientistas. Não, não e não.
Há empresas, fundos de investimentos e
todo tipo de negócio interessado em investir na busca de lideranças das favelas
pra fazer parcerias e há aqueles que desejam apenas fazemos de empregados — ou
o que eu chamaria de escravos sociais.
Meu conselho, se é que posso dar, é que
precisamos olhar para as oportunidades e aproveitá-las, sim. Pensar em ganhar
dinheiro como a gente merece, sem nunca esquecer de levar também prosperidade,
empreendedorismo e emprego para a base da pirâmide. É preciso que as lideranças
— já descobertas pelos empresários ou as que serão em breve — encarem esses desafios
de frente.
Não vai ser fácil e vocês ainda vão
ouvir é muito desaforo dos seus manos, como eu ouvi um dia. Poderão dizer que
você se vendeu, que você traiu o movimento, que você não é mais o mesmo. Que
agora você é fechado com os boys. Mas os críticos só percebam o valor de sua
missão quando ela gerar um emprego para eles ou para seus pares.
É fundamental que essas fusões sociais
gerem prosperidade para o coletivo. Alguém vai ter que pagar pra ver, pagar um
preço inicial e receber os dividendos finais. E já que tem que ter alguém,
então levante o braço.
Existem aí alguns movimentos de grandes
empresários e empresas armados com lupas, eles estão desejando o nosso país
chamado favela, para transformá-las em uma espécie de nova Serra Pelada. Eles
até têm um discurso apurado sobre negócios sociais, estudaram inclusive nas
melhores universidades do mundo e garantem que têm as melhores intenções, mas
na verdade a maioria não tem nenhum compromisso com os moradores da favela, só
com o que eles têm disponível no bolso. Eu classifico esses predadores como
praticantes do “Caô social”.
Mas muita calma, existe muitos também
que são comprometidos é apenas agora tem a chance de contribuir, e mesmo os
adeptos do “ CS” podem sim, serem convertidos.
Sejam quem for, pensem como pensem, a
favela é quem vai dar o tom. É quem vai ajudar a construir as regras. Por isso
devemos estar alertas, sempre. O desenvolvimento econômico passa por parcerias,
mas essas parcerias precisam ser saudáveis.
O movimento social da favela continua
agonizando na dependência de políticos, e eles o que mais querem é alimentar
essa enfermidade e nos manter doentes, dependentes. É dai que vêm os seus
votos. Mas o que o movimento social da favela precisa fazer é imediatamente se
juntar a empresas e fundos de investimento capazes de elevar a favela à altura
da sua potência, sempre em parceria.
A única experiência social que a favela
ainda não teve foi a de sócia. Insisto: precisamos ter consciência e
responsabilidade. Dentro da favela, é o morador quem dita as regras, e não o
capital.
Ao mesmo tempo em que vejo muitos
empresários, artistas e famosos se movimentando em direção às favelas, vejo
também os favelados se organizando para promover esses encontros, construindo
soluções com empresas caseiras ou multinacionais.
Meu sonho é ver, o quanto antes, os
favelados e ex-favelados como eu recebendo prêmios importantes, na área de
economia ou talvez criando seus próprios prêmios. Não vou descansar até ver os
favelados criando e disputando um grande mercado, o mercado da favela.
Pulsante, rico, próspero.
No final do dia, o importante mesmo é
perceber que os favelados entenderam que não estão falando do dinheiro pelo
dinheiro, mas da possibilidade de transformação real a partir de uma revolução
social por vias econômicas.