Versos | Prosas - Por Hernani
Pereira dos Santos
O que o hip-hip, os graffitis, o skateboarding
e o streetdancing têm em comum? Além de serem palavras
estrangeiras, todas elas designam práticas artísticas ou esportivas com um
claro apelo estético e emocional destinado à população marginalizada e
periférica, apesar de hoje estarem bastante difundidas nos contextos os mais
diversos. Afinal, estas práticas surgiram todas de contextos periféricos – a
maior parte delas, dos subúrbios e periferias estadunidenses. Contextos
periféricos habitados por gente periférica.
A maior parte desta
gente era formada por jovens. Jovens estes que lidavam, diretamente, com a
questão de qual identidade deveriam conquistar e defender para si. Identidade
esta que, por sua vez, só poderia ser conquistada e defendida em face do outro,
daquele que é diferente de mim. Assim surgiram diversas tribos urbanas, algumas
das quais foram, com o tempo, assimiladas pela população periférica brasileira,
novamente por uma questão de identidade e de diferença. A grande questão é que
nem sempre somos respeitados em nossa identidade e em nossa diferença.
Lembre-se, a título de exemplo, da recente proposta de criminalização do funk (outro nome importado, mas
apropriado de acordo com todas as idiossincrasias das populações brasileiras). Alegando a pretensa
defesa da “criança, o menor, adolescentes e família”, contra um suposto “crime
de saúde pública”, esta proposta teve mais de 20.000 assinaturas e foi
encaminhada para consulta pública (maiores detalhes podem ser consultados aqui: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129233).
Basicamente,
o que se está dizendo é que esta prática cultural não deve ser reconhecida
social e legalmente e que todo aquele que se vale dela com fins de
autorrealização não pode mais contar com este laço de solidariedade que lhe
garantia, pelo menos, a liberdade de seu exercício. Não é novidade alguma
afirmar que somos seres sociais. Mas, talvez caiba enfatizar que a maneira como
nos tornamos seres sociais e nos mantemos fiéis em nossos laços de sociedade
depende da maneira como somos reconhecidos e respeitados. O primeiro
reconhecimento, certamente, vem de nossos laços familiares mais íntimos. E a
nossa confiança nos outros vem do amor que a nossa família é capaz de nos
oferecer. Muitos jovens, infelizmente, sofrem com a rejeição familiar por não
se encaixarem no conjunto de valores de suas famílias. Isso, sem dúvida,
reflete em prejuízo na capacidade que eles têm de confiar em outras pessoas e
de se sentirem seguros – literalmente, “em casa” – perante o diferente.
A fala de uma figura
pública tem, é claro, os mais amplos impactos sobre a maneira como uma pessoa
se relaciona com os outros e com ela mesma. Os efeitos de uma fala transmitida
em rede nacional, por exemplo, podem reverberar de diversas formas sobre a
maneira como um indivíduo vê a si mesmo e aos outros. Um rebaixamento constante
de uma identidade ou de um grupo pode levar à negação de determinados traços ou
práticas por parte de um sujeito ou um grupo de sujeitos e mesmo à culpa e à
vergonha de ser quem se é, ou, no lado contrário, à violência e à violação de
direitos por parte de outro grupo. Tome-se como exemplo o caso de pessoas
membros da religião candomblecista que, devido ao estigma social, preferem não
assumir ou expressar a sua religiosidade em público, pois sabem que serão
rechaçadas ou excluídas de uma determinada esfera de convívio social.
Tome-se, também, o
caso de indivíduos negros que deixam de considerar positivamente os seus traços
físicos, ou mesmo as suas capacidades psicológicas, devido a um rebaixamento
social destas características e, associado a ele, a um certo ideal de que as
características associadas ao “branco” são mais positivas. Estes são apenas
alguns poucos exemplos. Ao longo de nossas vidas, também queremos compartilhar
de nossas experiências, crenças e valores com círculos mais amplos de pessoas,
das quais nos tornamos amigos. Com estas pessoas, nos associamos de maneira
mais duradoura e em vínculos de maior reciprocidade e respeito. Para além
destes, também esperamos que os círculos mais amplos de pessoas, ao que damos o
nome de “sociedade”, nos deem o respaldo para que possamos exercitar a nossa
liberdade de crença e de valores, conforme algumas regras básicas de
convivência. Desta forma, não esperamos que o Estado, por exemplo, nos coíba de
exercer determinadas práticas estéticas ou culturais e por meio das quais nos
reconhecemos mutuamente como pertencentes a um grupo.
Existirão conflitos,
sem dúvida, mas, quanto maior for a violência pela qual somos coibidos neste
exercício, menor será, em retorno, a nossa confiança naquele que nos coíbe
(obs.: isto vale, também, para as relações entre pais e filhos). Um espaço de
negociação deve sempre ser mantido, sobretudo nos casos de conflito. Acontece
que, em muitos casos, o reconhecimento social e o respeito nos são negados de
modo injustificado. Não há boas razões pelas quais um sujeito negro não possa
ter como positivamente valorado os seus traços físicos pelos seus próximos ou,
então, não possa ser reconhecido como merecedor de um status social que se
julga como merecedor no meio de um grupo. Durante muito tempo, tanto no Brasil
quanto em outros países, a justificativa dominante para esta depreciação e este
rebaixamento estaria na (suposta) inferioridade da raça negra. Esta
justificativa teve, de início, uma base “científica”. Mas, nada mais do que uma
base científica suposta.
Além disso, também se
baseou em um sistema extremamente excludente e segregatório pelo qual as
oportunidades de fruição do convívio social e de governo da própria vida lhes
eram negadas. Um sistema que, por outro lado, beneficiou uma série de pessoas
que detinham o poder sobre os negros. Todavia, rejeitada a ideia de que haveria
uma “raça inferior”, por que, ainda, mantêm-se os preconceitos e as práticas de
exclusão com relação às pessoas negras? Pessoas ainda acreditam que sujeitos
negros não são merecedores do reconhecimento social – e este reconhecimento não
implica apenas o clássico sucesso financeiro ou de carreira. E este é um grande
problema da sociedade brasileira nos dias de hoje (veja-se o texto de Karen
Cogo sobre o racismo velado no Brasil, publicado aqui no Blog da CUFA: http://cufa-pr.blogspot.com.br/2017/07/o-racismo-e-velado-no-brasil_5.html).
A ausência de reconhecimento e de respeito
conduz a reações e emoções negativas nas pessoas. Aquele que se vê não
reconhecido e não respeitado se vê ora com vergonha, ora com sentimento de
culpa, ora com raiva ou com indignação moral. A coisa só piora quando a este
cenário se soma a violência, seja ela física ou mesmo simbólica. Ter os cabelos
puxados, ser esbofeteado, levar uma rasteira, ouvir palavrões ou palavras de
rebaixamento moral, direcionadas para si ou para o grupo ao qual se pertence, ser
impedido de transitar em um local público por conta de determinadas
características físicas ou comportamentais ou por conta de seu credo, tudo isto
é violência e tudo isto acontece ainda nos dias de hoje. Ver-se diante da negação
dos próprios direitos é, pois, uma violência para com o sujeito: ele sê vê ou
se sente como menor do que o outro e, portanto, como menos digno. A experiência
constante destas emoções negativas tem, basicamente, duas saídas: por um lado,
o sujeito pode se sentir menos capaz, menos potente, menos “energizado”, em seu
dia a dia e perceber-se, com o tempo, depressivo; por outro lado, o sujeito
pode, através da experiência destas emoções negativas, perceber que os seus
direitos estão sendo violados e que não está sendo moralmente reconhecido e,
assim, envolver-se na luta pela conquista de direitos e pelo reconhecimento
social.
Ora, fica muito claro
que, de um ponto de vista psicológico, o reconhecimento social e a garantia e o
respeito de direitos básicos são um fator importante de nossa saúde. Se somos
reconhecidos e respeitados, sentimo-nos capazes e podemos continuar no livre
exercício de nossos projetos nas interações que mantemos com as outras pessoas.
Se, por outro lado, não somos reconhecidos e respeitados, se temos os nossos
direitos violados e sofremos violência, sentimo-nos incapazes, perdemos a
confiança nos outros, deixamos de elaborar alguns projetos, que nos trariam
maior satisfação com a vida, e podemos até mesmo chegar a evitar,
progressivamente, o convivío social. É importante que todos os indivíduos
possam ser reconhecidos e respeitados. Em alguns casos, podem precisar de ajuda
especializada para voltarem a sentir-se capazes, seguros ou confiantes. Em
outros, necessitarão da articulação de uma organização, de coletivos ou de um
movimento social para que possam lutar por aquilo de que ainda carecem para o
pleno exercício de suas capacidades e projetos no convívio social.
Hernani Pereira dos
Santos é professor universitário do curso de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, Londrina, e doutorando da UNESP de Assis.
Contato:
jose.cufaparana@gmail.com