VERSOS & PROSAS – FAVELA | Por: José Antonio Campos Jardim
Foi nestes espaços de segregação, e marginalizado, que conquistei minha tão sonhada liberdade.
Foi nestes espaços de segregação, e marginalizado, que conquistei minha tão sonhada liberdade.
Desde
criança, tive que aprender a surfar no olho do furacão e sobreviver era a meta,
para não ser engolido pelo crime. Isto sim é coisa de preto. Desta forma, não
tão diferente de milhares de famílias brasileiras, a minha também viveu abaixo
da linha da pobreza. Pais humildes, pobres e semianalfabetos. E, mediante o
sonho de dias melhores, também peregrinamos em busca da melhor qualidade de
vida e, mediante as idas e vindas, tive a oportunidade de morar em algumas
“favelas” no Paraná, na Bahia e um curto período em São Paulo. Em meio aos
becos e vielas e ruas de terra é que vivenciei os encantos culturais das
pessoas e dos seus territórios diferenciados. No entanto, o fato de não ter
identidade local com os meus pares foi frustrante. Ao mesmo tempo, éramos
anestesiados pela frustração de estar peregrinando e não criar laços com os
territórios, com as culturas e com as pessoas. E, quando iniciamos o tão
sonhado vínculo afetivo (identificação) com o outro – na escola, nas ruas e com
os vizinhos de barracos –, era hora de partir em busca do ouro de tolo.
Naquele
momento, o medo do novo (desconhecido) era afagado pelas velhas lembranças do
futebol nas ruas, de soltar pipa no campinho de terra batida e dos longos jogos
de bola de gude que, na maioria das vezes, adentravam a noite. Mas cada local
em que pude estar foi um de aprendizado ímpar, que diretamente contribuía para
minha indignação ao “levar geral” (revista) da polícia nas ruas ao ir para
escola, pois esta é a única política pública constantemente presente nestes espaços
(favela), o que, por sua vez, contribui diretamente para a segregação e a
marginalização do negro. “Estamos falando de direitos, de
vidas ceifadas diariamente, da ausência do Estado, da história da construção
desse país”. Vivenciamos
diariamente nesses territórios as mais diversas mazelas sociais. Nesses
espaços, tive o desprivilegio de conhecer os politiqueiros que nos vistam de
dois em dois anos com fins da manutenção dos seus cargos. Vi meus irmãos e
jovens negros (amigos) serem massacrados, marginalizados e assassinados. Vi
meus irmãos e jovens negros (amigos) enveredarem-se para o crime. Vi meus
irmãos e jovens negros (amigos) serem ludibriados pelo uso do antedepressivo
dos jovens: o crack. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) entrarem para o
crime, querendo dias melhores. Vi meus irmãos e jovens negros (amigos) entrarem
para o mundo do crime para comprar uma casa melhor aos seus pais, ter um carro
para dar um “rolê” (passeio), ter um relógio “da hora” (bonito), ter um tênis
ou até mesmo um celular do momento.
Mas
foi nestes espaços de segregação, e marginalizado, que conquistei minha tão
sonhada liberdade, meus estudos em teologia e psicologia, minha família e, no
sonho de dias melhores, o pulsar da força de resistência. Foi nesses espaços e
pelos dos ensinamentos dos mais velhos que aprendi a não desistir da luta
diária em favor da minha vida, dos meus direitos e dos meus pares, aprendi que,
mesmo nos momentos mais difíceis, devemos continuar a sonhar sempre, pois da
ponte pra cá nada vem de graça. Nesses espaços, também vi meu pai ser preso
algumas vezes durante o regime militar e voltar pra casa de cabeça raspada. Sob
agressão, era neutralizado e conduzido pelos pracinhas: na maioria das vezes,
ele estava “chapado” (alcoolizado), como muitos seres humanos que não aceitam
toda a realidade de dor ao ver seus familiares (filhos) sem projeção de futuro. Do
mesmo autor: E esse futuro que nunca chega? (artigo publicado em 02 de maio de
2017) http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/e-esse-futuro-que-nunca-chega-716u2cj9wu6rw6lu8wqlywz05
Foi
nesses espaços de turbulência constante que, quando adolescente, tive que
escolher entre estudar e colher café, algodão e capinar soja para ou migrar
para o crime, como muitos dos meus amigos. Tive de aprender a driblar a
criminalidade nas lavouras em meio a frio, chuva e calor, e ao mesmo tempo
entender das leis nas ruas para não ser mais um jovem negro nas estatísticas da
criminalidade, ou seja, ser sugado pelas garras do crime. No entanto, alguns
amigos negros que não tiveram a mesma sorte de benção se foram por achar que no
crime poderiam conquistar a libertação do sistema “escravocrata” vigente. Nada
foi fácil para nós e não será para os pares nos dias de hoje. O 20 de Novembro
reforça nossa luta contra um sistema que nos vê como mais um. É fato que a
“Casa Grande” não nos vê como parte do “poder”, somos a parte que entra em cena
para uso, somos os buchas nos processos eleitoreiros. Somamos 54% da população,
mas na prática somos a minoria nos espaços de poder político, nos
gerenciamentos das grandes empresas e nos cargos de elite.
E,
diariamente, somos convidados a concordar com afirmações como “toda cor é
humana”. Absurda afirmação, pois sabemos qual cor é desumanizada diariamente. Entre os
fatos históricos e da atualidade, não dá para aceitar a condição de buchas que
nos é imposta pela “Casa Grande”; não dá para seguirmos terceirizando as nossas
representações políticas, não dá para olhar para os espaços de poder (Brasília)
e saber que existem bancadas para todos os gostos, exceto para os 54% da
população. Não dá para aceitar que um ato racista seja apreciado pelos
defensores dos bons costumes como um simples equivoco, como William Waack
dizendo “É coisa de preto”. Não há como aceitar os números, olhando das
arquibancadas, enquanto nossos jovens têm suas vidas ceifadas, pois, segundo
pesquisa realizada pelo Ministério Público no primeiro semestre de 2016, no
Paraná, quase metade das pessoas mortas pela polícia eram negras.
Os números espelham uma realidade
tristemente brasileira, como mostram diversos outros levantamentos. Enfim, que na data de 20 de
Novembro, o Dia da Consciência Negra, todos os seres humanos possamos entender
que não se trata de “mimimi” ou só de dados, mas de números reais que apontam
para um racismo velado, que muitos ainda insistem afirmar ser vitimismo.
Estamos falando de direitos, de vidas ceifadas diariamente, da ausência do
Estado, da história da construção desse país, que, em linhas gerais, não é
contada verdadeiramente e, quando sim, é contada, na maioria das vezes, por um
branco que insiste em postergar a verdade, como ocorreu em Belo Horizonte (MG),
onde um texto aplicado para leitura dos alunos afirmava que a feijoada é um
prato Europeu. Enfim, muitos
sobreviveram ao impacto do racismo, mas muitos ainda vivem a dor de serem
estigmatizados constantemente pela cor da pele. Que esta data seja um convite,
todos os anos e diariamente, para que possamos refletir sobre nossas atitudes e
os pré-julgamento em relação ao outro.
O texto se encontra publicado na
Gazeta do Povo Link:
José Antonio C. Jardim, pastor IPB, ativista social, psicólogo e
empreendedor social, é presidente estadual da Central Única das Favelas (Cufa)
Nenhum comentário:
Postar um comentário